terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Émerson Iser Bem: O lavrador que bateu Paul Tergat

Quem não se lembra de Paul Tergat? Tergat é o maior campeão da São Silvestre, mesmo não correndo a algum tempo na prova. Campeão por 5 vezes, e talvez o maior rival de um dos maratonistas mais importantes da história, Haile Gabrselassie, um dia conheceu Émerson Iser Bem.

Iser Bem hoje não é conhecido mundialmente como Tergat, e só venceu por uma vez a São Silvestre, em 1997. Mas por esse feito, ficou lembrado como o brasileiro que bateu o queniano papa-títulos. Foi o brasileiro que cansou menos na subida da Brigadeiro.

Aqui uma entrevista com o atleta, que hoje vive em Campos do Jordão, e faz faculdade de Educação Física:

Como você começou a correr?
Comecei aos 13 anos, em Santo Antônio do Sudoeste, na pastagem. Eu entregava leite de bicicleta, e quando chovia, a cavalo. Eu corria na pastagem para separar os bezerros para tirar leite para vender. Eu vendia leite de algumas vacas dos meus pais, de alguns vizinhos e também comprava leite dos vizinhos para revender na cidade. Naquela época eu jogava vôlei na escola. Meu esporte era vôlei. Mas precisei parar após sofrer um acidente.

O que aconteceu
? Eu estava selando um cavalo e mexeram com ele. Ele deu um pinote e meu dedo foi estrangulado numa corda do arreio. Perdi uma falange do polegar. Mesmo depois de cicatrizado, doía muito para bater na bola de vôlei com a mão. Então precisei largar o vôlei. Mas também, eu era reserva de um time ruim, não perdi muita coisa.

E como foi sua primeira corrida
? Participei da minha primeira corrida aos 12 anos. Corri uns 2 ou 3 quilômetros acompanhando os primeiros colocados da prova. Aí cansei e sentei na calçada, exausto. Fiquei uma semana com o corpo dolorido. Comecei então a treinar sério com 13 anos. Aos 14 anos fui Campeão Paranaense, quando recebi um convite para ir treinar em Londrina.

Como foi este convite?
Havia um projeto do governo do Paraná, que subsidiava atletas. Fui indicado pelo presidente da Federação Paranaense de Atletismo para o projeto. Neste projeto, eu ganhava meio salário mínimo e pensão completa. Acabei saindo de casa aos 15 anos e fui para Londrina treinar em uma equipe local.

Foi aí que vieram suas primeiras vitórias?
Sim. Fui Tricampeão Brasileiro Juvenil com 16, 17 e 18 anos. Bati o recorde brasileiro juvenil dos 5.000 metros, que permanece até hoje, com o tempo de 13"59.

Onde foi este recorde?
Foi no Campeonato Mundial Juvenil, na Coréia do Sul. Fiquei em oitavo lugar no torneio. O campeão do torneio naquele ano foi o etíope Haile Gebrselassie. (NR: O etíope Haile Gebrselassie era o recordista mundial da Meia Maratona (58"55 em Phoenix/USA em janeiro/2006) e dos 2.000 metros (4:52:86, há mais de 9 anos) até o último mês de fevereiro, quando suas marcas foram batidas, na Meia Maratona pelo queniano Sammy Wanjiru (58"53 nos Emirados Árabes Unidos (2 de fevereiro de 2007) e nos 2.000 metros pelo também etíope Kenenisa Bekele (4:49:99 em Birmingham, Inglaterra 17 de fevereiro de 2007)

Ninguém bateu seu recorde brasileiro juvenil?
Não, ainda não. Mesmo atletas fortes como o Marilson Gomes dos Santos e o Franck Caldeira não conseguiram bater este recorde, quando eram juvenis.

E como seguiu sua carreira dali em diante?
Então, sai de casa com 15 anos, fiquei em Londrina pelo projeto do governo por 1 ano e meio. Depois vim para Cosmópolis no estado de São Paulo, onde fiquei 4 anos, e depois Piracicaba. Sempre pela antiga equipe funilense, que representei por mais de 12 anos.

Quais foram suas vitórias mais importantes no atletismo?
A principal vitória para mim foi o GP de Portugal de Cross Country, no Algarve, em fevereiro de 1997. Naquela prova, ganhei do queniano James Kariuki, que foi Campeão Mundial de Cross Country. Naquele mesmo ano, venci a São Silvestre, que é muito importante por eu ser brasileiro, com o tempo de 44"48, e sob uma temperatura de 33 graus. E ainda venci o Paul Tergat naquela prova, que havia ganho a São Silvestre em 1995 e 1996 e também ganhou em 1998, 1999 e 2000. Também venci a Meia Maratona de Buenos Aires em 1996, a Meia Maratona de São Paulo em 1997, a 23ªCorrida de São Silveira em 1998 e em duas ocasiões, venci o primeiro trecho (10 Km.) da Maratona de Revezamento de Chiba, no Japão, entregando o revezamento em primeiro lugar. No primeiro ano, foi onde eu fiz minha melhor marca de rua nos 10 km., com 27"59. No ano seguinte, fiz o mesmo trecho em 28"08.

Como foi para você a repercussão da vitória da São Silvestre, em 1997?
Eu saí do anonimato e virei estrela da noite para o dia. No atletismo não tínhamos estrutura para isso. Naquele ano eu corri patrocinado pela Asics e pela BMF. Eu havia entrado para a equipe da BMF apenas 3 meses antes. Com a vitória, ganhei 1 quilo de ouro da BMF e um carro. O prêmio total que eu recebi da São Silvestre foi de R$33.000,00. Hoje a BMF é a dona da equipe e mudou muito a forma como esta repercursão afeta os atletas. Hoje eles sabem como tratar melhor este momento de evidência do atleta, não permitindo que ele corra quando suas condições não são 100%. Veja o Marílson, é bem diferente da minha época, por isso não correu a última São Silvestre. Outro aspecto que mudou muito é a atenção médica dispensada atualmente a estes atletas, pois quando me machuquei nunca fui conduzido a um médico especialista, mas me deram um guia de um plano de saúde para que, apenas com a carteirinha eu tentasse a sorte. Isso também mudou.

Em que países você já correu?
Já corri no Japão, Coréia, Estados Unidos, Portugal, Espanha, França, Itália, Suíça, Bélgica, Holanda, Alemanha e Austrália e Irlanda, em Belfast. Na Inglaterra em 1995 participei do Campeonato Mundial Cross Country, em Durham.

Qual desses lugares você gostou mais de conhecer correndo?
Sem dúvida nenhuma, onde eu mais gostei de correr foi no Japão. Corri 5 vezes no Japão. Também gostei muito da Coréia, onde corri em 1992.

E onde você menos gostou?
Da Austrália. Peguei uma virose e passei mal lá. Tenho más recordações.

Você tem algum ídolo no esporte?
Não tenho um ídolo específico. Mas quando comecei, me inspirei nas vitórias do Joaquim Cruz na Olimpíada de Los Angeles/84 e do José João da Silva, que havia ganho a São Silvestre em 1980 e 1985.

E rival? Você já teve algum grande rival nas corridas?
No profissional não. Não tinha nenhum grande rival direto. Nos anos 90 havia muitos corredores bons no Brasil. Teve um ano que eu, ainda juvenil, era 12º do ranking brasileiro de 5.000 metros com o tempo de 14"13. Mas no juvenil sim. Ainda no Paraná, eu tinha um rival: um garoto também chamado Émerson. Émerson Vetori. Nossa rivalidade era grande. A primeira vez que ganhei uma corrida dele, ele sentou e chorou muito, tamanha nossa rivalidade. Uma vez, em uma prova de 5.000 metros, contra ele, estávamos emparelhados até os últimos 100 metros do último quilômetro. Ganhei dele apenas nos últimos 100 metros. Neste último quilômetro, corremos tão forte, que fizemos o quilômetro em 2"36. Tínhamos 16 ou 17 anos!

Como a corrida contribuiu na sua vida?
Corro há 21 anos. Tudo que tenho hoje, foi reflexo destes anos de corrida. Não só financeiramente, mas minha experiência de vida, reconhecimento, o respeito que conquistei. Viajei muito e conheci muita gente também, devido à corrida.

Você é muito novo e já teve grandes conquistas. Quais seus objetivos a longo prazo?
Hoje estou cursando o segundo ano da faculdade de Educação Física em Taubaté, na UNITAU. Quero fazer especialização em recuperação de cardiopatias, utilizando as caminhadas e corridas em velocidade lenta.

Como você vê o crescimento atual das corridas de rua e de atletas amadores?
Muitos estão descobrindo o prazer de correr, pela intensidade, para relaxamento ou por prazer. O país só ganha com a massificação da corrida. É mil vezes mais importante ter esse crescimento de atletas amadores nas corridas, do que formarmos mais 1 atleta de ponta, campeão. Isso também ajuda muito o governo a economizar com remédios de hipertensão e doenças cardíacas. A consciência da importância de uma boa caminhada ajuda muitos. Mas o governo precisa incentivar o esporte juntamente com o estudo. Quero deixar claro que apoio totalmente os projetos esportivos. A massificação da prática esportiva está ligada à qualidade de vida, saúde pública, etc. Por outro lado, os projetos esportivos estão ligados ao futuro do esporte, de oportunidade de mudança de vida para muitos jovens, como aconteceu comigo. Por isso acredito ser oportuno abordar alguns aspectos das ?escolinhas de esporte?, aí sim acredito que não devemos sacrificar o curso natural da vida de um jovem, a menos que lhe seja imperativo o estudo e que lhe ofereçam além de treino, bolsa de estudo. O esporte e o estudo têm que andar lado a lado. Só o esporte não ajuda. O esporte é bom sim, mas têm que estar condicionado ao crescimento ao futuro da pessoa, do jovem. É muito perigoso um jovem ser tirado de sua família, de sua cidade para tentar a vida no esporte. Isso acontece muito em todos os esportes. Ele sai de sua vida simples em sua cidade e vai para uma cidade grande treinar numa equipe, numa realizade social muito diferente do que estava acostumado. Para os que obtêm sucesso, ótimo, mas para os 99% desses jovens que acabam não vingando no esporte, isso é muito ruim, pois acabam retornando para sua cidade, 2 anos depois, totalmente deslocados da realizade local. Pararam de estudar, enquanto seus amigos continuaram estudando. São vistos pela família e pelos amigos como fracassados por não terem tido sucesso, e muitas vezes retornam com uma namorada e um filho. Desta forma acabam se perdendo na vida. Émerson Iser Bem mora atualmente em Campos do Jordão, onde auxilia o projeto "Frutos da Terra". Treina uma equipe de trabalhadores locais, muitos dos quais, tirou da bebida. Ingressou no curso de Educação Física da Universidade de Taubaté em 1º lugar no vestibular. Sem dúvida alguma é um campeão, nas pistas e na vida. Parabéns, Émerson.

Reportagem: Fauzer Simão Abrão Júnior